Durante meus primeiros anos da iniciação científica, estive trabalhando com um fenômeno já bem descrito em muitos organismos: o estresse nutricional. É uma condição que pode afetar muitos organismos, e de fato, estratégias evolutivas surgiram como forma de lidar com esse desafio.

Apesar de ter suas implicações em humanos e mamíferos em geral, minha curiosidade estava voltada a entender como o estresse nutricional poderia afetar um parasita que vive dentro de insetos ( mas também em humanos) popularmente conhecidos como barbeiros (que chamarei de agora em diante de triatomíneos). Os triatomíneos são insetos hematófagos (se alimentam de sangue) e por essa característica, se tornaram importantes vetores (transmissores de organismos) de um parasita conhecido como Trypanosoma cruzi, o agente causador da Doença de Chagas. Todo esse processo, desde a identificação dos triatomíneos como insetos relacionados a uma doença, qual o agente etiológico (o causador) e quais os possíveis hospedeiros, foram evidenciados em um feito único até agora na história da ciência, pelo médico sanitarista brasileiro, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas, daí o nome da doença.

Barbeiro Se alimentando de sangue – fonte: Deep Look

Mas voltando ao assunto do estresse nutricional, eu estava curioso sobre alguns resultados da minha pesquisa, em que o Trypanosoma cruzi parecia ser mais resistentes ao estresse nutricional do que um parasita muito próximo (Trypanosoma brucei) e até mesmo células de mamíferos. Mas, por qual motivo? E essa pergunta me perseguiu e me persegue. Comecei a estudar a literatura científica sobre os triatomíneos, e encontrei que alguns autores apontavam que esses insetos podiam perdurar mais de 4 meses sem se alimentar.

Comecei a pensar então, se essa condição de estresse nutricional ecológica de um barbeiro não teria uma relação na forma de pressão evolutiva com a resistência aparente dos parasitas no inseto. E nas minhas andanças pela literatura, encontrei um texto em que os autores apontavam que uma das possíveis causas da morte de Charles Darwin, teria sido agravada ou consequência da Doença de Chagas. Mas de onde eles tiraram essa hipótese? Então, fui direto na fonte. Baixei a edição do “Natural History of the Various Countries Visited by H. M. S. Beagle, under the command of captain Fitzroy, R. N. from 1832 to 1836” pra acompanhar a viagem do Darwin durante sua visita na américa latina e tentar entender a correlação entre a suposta causa mortis por Doença de Chagas. Supõe-se que que Charles Darwin tenha morrido em consequência de uma insuficiência cardíaca em abril de 1882. Mas o assunto ainda é controverso.

Para minha surpresa, encontrei um parágrafo descrevendo uma situação peculiar, quando Charles Darwin viajava pela região dos pampas sul-americanos:

We slept in the village of Luxan, which is a small place surrounded by gardens, and forms the most southern cultivated district in the Province of Mendoza; it is five leagues south of the capital. At night I experienced an attack (for it deserves no less a name) of the Benchuca, a species of Reduvius, the great black bug of the Pampas. It is most disgusting to feel soft wingless insects, about an inch long, crawling over one’s body. Before sucking they are quite thin, but afterwards they become round and bloated with blood, and in this state are easily crushed. One which I caught at Iquique, (for they are found in Chile and Peru,) was very empty. When placed on a table, and though surrounded by people, if a finger was presented, the bold insect would immediately protrude its sucker, make a charge, and if allowed, draw blood. No pain was caused by the wound. It was curious to watch its body during the act of sucking, as in less than ten minutes it changed from being as flat as a wafer to a globular form. This one feast, for which the benchuca was indebted to one of the officers, kept it fat during four whole months; but, after the first fortnight, it was quite ready to have another suck.

Tradução:

"Dormimos na aldeia de Luxan, que é um lugar pequeno cercado de jardins, na noite sofri um ataque (pois não merece ser nomeado menos que isso) do Benchuca1, uma espécie de Reduvideo, o grande inseto preto dos Pampas. Antes de sugar eles são bem finos, mas depois ficam redondos e inchados de sangue, e nesse estado são facilmente esmagados. Um que eu peguei em Iquique, (pois são encontrados no Chile e no Peru), estava muito vazio. Colocado sobre uma mesa e, embora cercado de pessoas, se um dedo fosse apresentado, o inseto ousado projetaria imediatamente sua probóscide, faria uma investida e, se permitido, sugaria sangue. Nenhuma dor foi causada pela picada. Era curioso observar seu corpo durante o ato de sugar, pois em menos de dez minutos passou da forma achatada de uma hóstia a uma forma globular. Esta única refeição, pela qual a benchuca ficou devendo a um dos oficiais, a manteve gorda durante quatro meses inteiros; mas, depois da primeira quinzena, estava pronto para outra refeição."
1 NT: a Benchuca a qual Charles Darwin se refere, é na verdade a Venchuca, nome pelo qual o triatomíneo é conhecido em outros lugares da América Latina.




Por conta desse relato de próprio punho do Charles Darwin, começaram as correlações da causa de sua morte por insuficiência cardíaca com cardiopatia chagásica. Entretanto, o que me chamou atenção foi seu relato de que os triatomíneos poderiam passar 4 meses sem se alimentar. Foi o relato mais antigo que encontrei de um suposto estresse nutricional nesses insetos. Mesmo Charles Darwin já o havia percebido.

Mais de 100 anos depois, Guenter Schaub e colaboradores investigaram o fenômeno em mais detalhes e puderam observar que os triatomíneos poderiam aguentar até mesmo um ano sem se alimentar e que mesmo após a morte do inseto, ainda era possível observar Trypanosoma cruzi no intestino do inseto vetor.

Particularmente, acho isso fascinante. Como um organismo unicelular conseguiu sobreviver a esse desafio natural-ecológico? Foi essa a pergunta que me fiz, e que me propus a investigar junto ao grupo do Prof. Ariel Silber ( USP – Laboratório de Bioquímica de Tripanossomatídeos) e em conjunto com a Dra. Maria Julia Barisón (ICC-Fiocruz). Os resultados são no mínimo, interessantes. Mas isso é papo pra um outro dia, no momento estamos preparando o manuscrito para submissão, quando isso acontecer, volto para contar para vocês.

Mayke Alencar – Biólogo, PhD candidate.

Referências:
1- Natural History of the Various Countries Visited by H. M. S. Beagle, under the command of captain Fitzroy, R. N. from 1832 to 1836

2- Darwin’s illness

3- Kollien and Schaub – Development of Trypanosoma cruzi after starvation and feeding of the vector – a review

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